25 setembro, 2016

Fragmentos de Memória

25.06.2016

Quando o Alzheimer atingiu sua pior fase, minha mãe deixou de conversar. Não conseguia montar uma frase sequer, as palavras despareceram da sua memória. Um dia, enquanto tentava fazê-la comer um pouco, cantarolei uma hino cristão que ela gostava muito:

-"Senhor meu Deus, quando eu maravilhado fico a pensar nas obras de tuas mãos. No céu azul de estrelas pontilhado..."

De repente ela começou a cantar o hino. Eu parei e ela continuou.

Trecho do livro Em busca do tempo perdido de Marcel Proust

Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto*, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória. (p.57)

O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os nossos esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objeto antes de morrermos, ou não o encontrarmos. (p.51)

O papel da memória é o tema central desse livro e o trecho acima descreve bem alguns momentos que já vivi.

Algumas vezes, quando subo a serra indo para o Frade, um cheiro de Açucena entra pela janela do carro, sobe pelas minhas narinas e invade meu corpo todo. É o cheiro da minha infância aqui no Frade. Não é a lembrança de nenhum episódio, é mais uma sensação, uma coisa estranha que não sei explicar. 

Banana da terra cozida me traz a imagem da cozinha da antiga casa em Macaé, um perfume faz-me lembrar de um namorado que não vejo há mais de 30 anos, cujo rosto nem me lembro. Mas lembro do cheiro. E outros tantos cheiros tem sobre mim esse mesmo efeito, de me transportar para outro tempo.

A música também exerce esse mesmo poder, porém com menor intensidade.

Parece-me que mesmo depois que tudo se acabar e mesmo que eu fique senil, esses cheiros sobreviverão guardados em alguma gavetinha da memória, esperando apenas que algum perfume ou alguma música abra a gaveta.